sábado, janeiro 11, 2014

Humanidade(s) - A fisiologia do Eu

Com o aparecimento dos neurónios a vida adulta altera-se profundamente. Estas células ocupam-se das outras células do corpo, mas apesar de terem a capacidade de transmitir sinais electroquímico e enviá-los para outras partes do corpo, não deixam de ser células. A separação cérebro-corpo tem sido exagerada - os neurónios são células e é assim que devem ser vistas. A partir do momento que os neurónios se instalam dá-se um salto de complexidade, que a natureza negou às plantas - as suas paredes celulósicas impediram as células de evoluir para neurónios.
O aparecimento de cérebros conscientes capazes de auto-reflexão flexível é o grande acontecimento que se segue. Marca o caminho para uma resposta rebelde, contra a natureza desprovida de bússola moral. Quando terá acontecido? É difícil precisar. Sabemos que os nossos antepassados mais diretos percorriam a Terra à cerca de 200 mil anos e que há cerca de 30 mil anos começaram a produzir arte rupestre. A grura de Lascaux é já uma espécie de capela Sistina - é óbvio que já estava aqui em cena uma mente capaz de um processamento simbólico.
Antes dessa arte rupestre já o homem tinha rituais fúnebres (entre os 100 e os 70 mil anos a. C). Ora isso só é concebível com uma mente já preocupada com a vida e uma tentativa de a interpretar e valorizar. À medida que o conhecimento acerca dos seres humanos e do Universo se ia acumulando, a estrutura do "eu" autobiográfico foi-se complexificando  - a passagem do estilo de vida nómada para sedentário também teve implicações nesta complexificação. A partir do momento em que o "eu" autobiográfico funcionou com base no conhecimento gravado nos circuitos cerebrais e nos registos externos de pedra, argila ou papel, a humanidade passa a associar as necessidades biológicas à sapiência acumulada.
Inicia-se, assim, um longo processo de pesquisa, reflexão e reação, representado ao longo da história humana nos mitos, nas religiões, nas artes e  em variadas estruturas sociais - moralidade, sistema de justiça, economia, política, ciência e tecnologia.

Adaptado de O livro da Consciência, António Damásio


Sem comentários: