domingo, dezembro 29, 2013

Um olhar (especialista) sobre a Crise...

Estamos a viver uma época de crise, intrigante e assustadora, capaz de relegar o Homem para
virtualidades desconhecidas...Numa visita feita há dias a uma conhecida cadeia de livrarias, deparei-me com uma revista lançada há pouco tempo. Chama-se “Plano”, tem um aspeto gráfico sóbrio e em papel reciclado, dando logo na capa a ideia dos conteúdos. Foi o seu primeiro número (edição de Inverno 2013 – haverá uma edição de Verão, a sair em junho de 2014). Chamou-me à atenção um trabalho da autoria de António Gonçalves, que é um desses "super gurus" portugueses que vivem no estrangeiro... Conforme está indicado na revista  António M. Gonçalves é diretor de Vendas e Desenvolvimento de Negócios da NYSE Euronext – a Bolsa de Nova Iorque - para a América Latina, pertencendo à NYSE Technologies, o departamento de tecnologias avançadas da bolsa nova-iorquina. Vê-se de imediato a profundidade dos seus conhecimentos pela forma sintética como expõe as ideias, evidentes no título “As três cartas que mudaram o jogo”. Essas cartas são, segundo o autor, a tecnologia, a globalização e a desregulamentação. O autor disseca  a questão do funcionamento das Bolsas de Valores, desmistifica o lado “romântico” da Bolsa de Wall Street transmitido pelas televisões...clarifica que as famosas salas de compra e venda de ações estão reduzidas a uma só, com algumas dezenas de “stock brokers” olhando os ecrãs de computadores. A  ação passa-se nos super computadores que realizam as operações bolsistas a muitos quilómetros dali, em New Jersey. Desses computadores, sai o controlo bolsista de Nova Iorque, mas também de outras bolsas espalhadas pelo mundo, como a de Lisboa que julgamos estar em Portugal...Não está, está situada num centro de dados em Londres, onde estão também outras, como a de Joanesburgo ou de Bruxelas...

É assim o “trading” moderno...deixo algumas passagens da extensa crónica:

"A humanidade tem estado em constante evolução. O problema é que atualmente as mudanças são cada vez mais rápidas, forçando as pessoas a constantes adaptações. Os fatores dessa mudança são a tecnologia, a globalização e a desregulamentação. Se os analisarmos em profundidade veremos que estão interligados. (...)
A globalização tem como causa-efeito principal uma constante desregulamentação, isto é, a criação de novas leis com objetivos de se adaptarem a novas formas de vida. (...)
Consigo imaginar para 2100 uma "união mundial", onde o estado-nação não tem a relevância, nem a capacidade de ação, nem o controlo sobre a evolução da sociedade que tem hoje e onde as corporações com actividades globais serão os novos centros de poder. (...)
Londres tem bairros inteiros sem habitantes permanentes - Belgravia, Mayfair, Kensington, Knightsbridge, estão quase sempre de janelas fechadas. Foi tudo comprado por oligarcas russos, chineses, brasileiros, árabes - não vivem em lado nenhum e vivem em todo o lado. Em Manhattan e Miami os edifícios mais luxuosos também estão vazios. Os donos aparecem esporadicamente para ver um espetáculo na Broadway, ver um musical ou ir a Art Basel da South Beach...em 2012 o mais caro apartamento de Nova York foi comprado por um milionário russo - era só para a filha ir para a universidade! (...)
Nos últimos 30 anos a inovação tecnológica tem fomentado a globalização e a desregulamentação. Quando entrei ao serviço da NYSE, em 2005, os mercados financeiros funcionavam ainda de forma tradicional. A grande maioria do trading era feita no icónico piso de remates, por seres humanos, numa tradicional hasta pública...só que hoje o mercado de capitais está bem longe dali. (...)
Após se instituir o trading electrónico (pós 2005) a transformação foi muito rápida. As operações nos computadores dispensam a intervenção humana, permitindo a diminuição dos custos das operações, acomodando um crescimento quantitativo e qualitativo dos mercados. Passou-se para o trading algoritmico - baseia-se em estratégias previamente definidas por especialistas em programação, finanças e métodos estatísticos...o problema é que as máquinas não pensam e não lidam bem com situações de grande stress. Os seres humanos continuam a ser os únicos capazes de lidar com essa situação de grande desequilíbrio, como se pode verificar com o flash-crash de 2010 em que nos espaço de 1 segundo o mercado caiu 1000 pontos. Tiveram de parar-se todos os computadores e voltar-se ao trading de viva voz. (...)
Se passarem por Wall Street para verem a icónica NYSE, é importante que saibam que a bolsa de Nova York não está ali - está num centro de dados muitos quilómetros fora da cidade, no estado de New Jersey. Aí, centenas de computadores com estratégias algorítmicas enviam ordens automáticas de compra e venda para outros computadores espalhados pelo mundo - Tóquio, Hong-Kong, Londres, São Paulo. Os centros de dados que servem de base aos mercados financeiros mundiais estão interligados por redes de alta velocidade, dirigindo investimentos para diferentes pontos do mundo...isto em milissegundos. (...)
A localização física das bolsas passou a ser irrelevante. Por exemplo, as transações da bolsa de Joanesburgo são feitas por um computador sediado num centro de dados em Londres, para assim poder estar mais próximo dos computadores investidores. Esse é também o caso dos computadores de trading da bolsa de Lisboa, Paris, Bruxelas, Amesterdão... - todos eles estão em Londres. Sim, caro leitor, a bolsa de Lisboa, se bem que continue fisicamente com um espaço em Lisboa, em termos técnicos é um computador em Londres. (...)
Se o investidor não possuir o computador mais atualizado e potente do mercado, simplesmente quando receber a informação de compra ou venda ideal já outro computador fechou o negócio. Pagam-se somas astronómicas para aceder ao computador central uns meros 12 milissegundos. Os mercados financeiros estão cada vez mais dependentes de tecnologia mais rápida, potente e cara. (...)
Aos estarem interligados, os mercados financeiros passaram a ser centros electrónicos de uma liquidez internacional, globalizada e apátrida e com capacidade de enviar liquidez instantaneamente para onde houver mais retorno de investimento. Após a grande recessão de 2008 e com a injeção de capital a nível mundial por parte dos bancos centrais, o volume de liquidez global disponível aumentou dramaticamente e passou a fluir caprichosamente de um mercado para outro, podendo arrastar países inteiros para situações difíceis, tanto pelo seu afluxo como pela sua retirada. A liquidez flui incessantemente para onde não lhe imponham barreiras, e isto em poucos milissegundos. Na maior parte das vezes esses fundos localizam-se em paraísos fiscais - os offshores. Se alguém tentar liquidar um offshore, os investidores simplesmente movem esses fundos para outro e enquanto houver um (um que seja) estado que esteja disposto a tirar vantagens dos impostos dos outros o problema não poderá ser solucionado. (...)
Wall Street duvida que os governos consigam regular os mercados que se tornaram tão complexos e globalizados...só um regime como o da Coreia do Norte consegue escapar-lhe. É nele que devem procurar a inspiração se quiserem fugir às cartas que mudaram o jogo. Todos os que prometem receitas fáceis são demagogos ou ignorantes (da complexidade dos sistema económico globalizado). (...)
A competitividade passa pela produção de qualidade superior, ou de produtos de nicho altamente diferenciados, ou pela diminuição do custo do trabalho. Temos de decidir escolher um destes fatores, ou ficar sem trabalho. Os Portugueses "têm vindo a escolher" ficar sem trabalho. A tendência para distorcer a realidade e processar seletivamente a informação que nos chega estende-se dos indivíduos a nações inteiras. Todas as nações têm as próprias narrativas históricas - sempre auto-engrandecedores, auto-enganosas e muitas vezes falsas. Portugal tem claro a falsa e na minha opinião muita danosa narrativa história dos descobrimentos. Na verdade viviam 100 milhões de pessoas no continente Americano quando os portugueses (e europeus) lá chegaram. Essas civilizações foram selvaticamente destruídas no que são algumas das mais negras páginas da história da humanidade. Se há hoje herança profunda que os portugueses deixaram , é a de milhões de descendentes de escravos deslocados de África para o novo mundo. (...)
O teste fundamental de uma ciência é a capacidade de prever o resultado de uma experiência - o futuro. É por essa razão que sou daqueles que não olham a Economia como uma ciência, nem atribuo qualquer valor científico às teorias económicas atuais. Nenhuma das teorias económicas conseguiu prever a grande recessão de 2008. (...)
Olhando para Portugal de fora, vejo um país emerso no seu próprio auto-engano - vindo tanto da direita como da esquerda - recusando aceitar resultados inevitáveis de uma situação dominada pela tecnologia, pela globalização e pelo desregulamentação, insistindo no seu paradigma retrógrado de nação isolada e protegida, decidindo acreditar nas falsas narrativas e que recusa compreender a sua precária situação financeira. As regras do jogo mudaram, é preciso reconhecê-las e aceita-las, ou então seguir o caminho da Coreia do Norte. (...)
A Biologia deixou claro que toda a evolução ocorre para benefício do indivíduo  em particular e não da espécie. Aqueles que abraçaram as mudanças foram sempre os que mais beneficiaram com elas. Essas mudanças causam dolorosas quebras com a ordem estabelecida e grande sofrimento naqueles que as recusam aceitar. E não mudaremos se não pararmos de nos enganar a nós próprios!"

António M. Gonçalves, Managing Director. Sales and Business Development Latin American - NYSE Euronext 
Revista PLANO, N.º1, Inverno 2013

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