sexta-feira, novembro 01, 2013

Dos demónios, das bruxas e afins...



No mundo antigo a crença nos demónios era generalizada. Eram tidos como seres naturais e não entidades sobrenaturais. Hesíodo refere-se-lhes de passagem. Sócrates (o grego) também. Platão, o mais célebre aluno de Sócrates atribuía um importante papel aos demónios. Ele negou firmemente que os demónios fossem uma fonte de mal e representou "Eros", detentor de paixões sexuais, como um demónio - nem mortal, nem imortal; nem bom, nem mau. Todos os platónicos posteriores, incluindo os neoplatónicos, que influenciaram a filosofia cristã, consideraram que alguns demónios eram bons e outros maus.

Os primeiros padres da igreja, apesar de terem absorvido o neoplatonismo, estavam desejosos de se separar dos sistemas de crenças "pagãos". Na "Cidade de Deus", S.º Agostinho assimila esta tradição antiga (deuses ocupam regiões elevadas, os homens as mais baixas e os demónios a região do meio...têm imortalidade do corpo, mas as paixões do espírito em comum com os homens), substitui deuses por Deus e demoniza os demónios - afirmando que estes são, sem exceção, malignos. São a fonte de todo o mal espiritual e material. Podem assumir diversas formas e saber muitas coisas - "demónio" significa "conhecimento" em grego ("Ciência" significa "conhecimento" em latim...)

Os demónios, "as potências do ar" descem dos céus e têm relações sexuais ilícitas com as mulheres. St.º Agostinho considerava que as bruxas eram o produto dessas uniões proibidas. As obsessões com os demónios começaram a atingir um crescendo, quando com a sua famosa bula de 1484, o papa Inocêncio VIII, desencadeou um movimento de acusação, tortura e execução sistemática de inúmeras "bruxas" em toda a Europa. Apesar da bula se referir a ambos os sexos, as perseguições recaíram maioritariamente sobre as mulheres.

Mesmo humanistas como Erasmo e Thomas More acreditavam em bruxas. O papa encarregou Kramer e Sprenger de escreverem sobre a temática. Estes, com citações exaustivas das escrituras, e de outros eruditos, produziram o "Malleus Maleficarum" - apropriadamente descrito como um dos documentos mais terríveis da história da humanidade. O Malleus resumia-se, em grande medida, à regra de que se uma mulher fosse acusada de bruxaria, era uma bruxa. A tortura era um meio infalível de demonstrar a validade da acusação.

Isto tornou-se rapidamente um meio de fraude financeira. Todos os custos com o processo ficavam a cargo da acusada. Para além disso, cada bruxa era obrigada a denunciar outras. O número de acusadas cresceu exponencialmente. Havia ainda um bónus para os membros do tribunal por cada bruxa queimada. Se houvesse remanescentes, era dividido entre a igreja e o estado. O papa Inocêncio VIII morreu em 1492, após tentativas infrutíferas de o manter vivo com transfusões (que provocaram a morte a 3 rapazes) e amamentando-o ao peito de uma ama. Foi chorado pela amante e pelos filhos.

Os julgamentos davam muita atenção à qualidade e quantidade de orgasmos nas supostas cópulas das rés com o Diabo (embora St.º Agostinho tenha sido peremptório ao afirmar que não se pode chamar "fornicador" ao diabo, bem como à natureza do "membro" do Diabo (que é frio... ). As marcas do Diabo eram encontradas nas partes íntimas das senhoras. Raspavam-se os pêlos púbicos e os inquisidores, exclusivamente homens, inspecionavam ao pormenor os órgãos genitais das acusadas. Não eram admitidas circunstâncias atenuantes nem testemunhas de defesa.

As execuções alastraram por toda a Europa - o continente civilizado - e ninguém sabe ao certo o número de pessoas assassinadas. Os críticos da imolação das bruxas eram castigados e, em alguns casos, queimados na fogueira. Os inquisidores e torturadores estavam a executar a obra de Deus...estavam a salvar as almas e a repelir os demónios...

Adaptado de "Um mundo infestado de demónios", Carl Sagan

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