quinta-feira, agosto 29, 2013

Crise: A culpa é da Matemática?

O colapso financeiro em Wall street no final do Verão de 2008 rapidamente se globalizou e se transmitiu ao sistema financeiro mundial. Como foi possível um desastre desta dimensão? A explicação mais simplista é que a culpa foi dos banqueiros gananciosos de Wall Street...o que se passou na realidade foi muito mais complexo e a Matemática pode ter desempenhado um papel crucial neste colapso.
Atualmente as estratégias de um grande banco têm muito pouco de artesanal ou "intutivo", seguindo, pelo contrário, modelos matemáticos muito sofisticados. Durante as duas últimas décadas, Wall Street foi recrutar às melhores universidades alguns dos alunos mais brilhantes de Matemática e Física, para fazerem modelagem matemática dos mercados. E, de facto, os modelos matemáticos são extraordinariamente sofisticados, exigindo computadores muito potentes. Esta tribo de especialistas é conhecida no meio pelos "quants".
Desde os anos 90 do século passado foi desenvolvida pelos quants, para medir o risco, uma métrica chamada VaR (Value at Risk, ou Valor de Risco). Parte do sucesso que o modelo VaR obteve junto dos não-quants deveu-se ao facto de a medição de risco que produz ter probabilidade 99% e se exprimir como único número - ainda por cima em dólares. O modelo VaR tornou-se a medida de risco por excelência do sistema financeiro.
Mas houve dois erros na articulação dos modelos matemáticos com a realidade. O primeiro de "normalidade" dos mercados VaR. O segundo é mais humano: na prática Wall Street mentia aos seus computadores de análise de risco.
Os ativos tóxicos mais usuais são pacotes de hipotecas de alto risco. Suponhamos que temos  um pacote de 1000 hipotecas a 30 anos, cada uma de 100 000 dólares. Temos, portanto, um pacote de 100 milhões de dólares. Suponhamos, ainda, que o juro total cobrado no final dos empréstimos é de 150%. Temos, assim, um ativo a 30 anos no valor de 250 milhões de dólares. Suponhamos, ainda, que cerca de 10% destas hipotecas eram de risco (grande probabilidade de incumprimento por parte dos devedores). Podemos, deste modo, classificar as hipotecas em função do risco - tranching - e com as que oferecem menos riscos, constituir um pacote ou fundo com 80 destas hipotecas. A probabilidade deste fundo entrar em colapso é praticamente nula. Assim o nosso fundo é quase como se fosse um depósito de 80 milhões de dólares com um prazo de 30 anos.

O problema residiu precisamente aqui...

As probabilidades de incumprimento de hipotecas diferentes no nosso fundo não são, de forma alguma, independentes! Claro que há incumprimentos aleatórios, quando por exemplo alguém sofre um acidente e fica incapacitado de trabalhar - um incumprimento deste tipo é de facto um acontecimento estatísticamente independente  do coletivo.
Mas a maior  causa de incumprimento nestas hipotecas é devida à subida das taxas de juro, portanto, os incumprimentos não são estatísitcamente independentes - pelo contrário, têm a mesma causa. Resumidamente, a não-independência estatística dos incumprimentos faz com que o fundo tenha um risco centenas de ordens de grandeza maior do que o ingenuamente previsto...daí a toxicidade do ativo, simplesmente ignorada atá ao rebentamento da bolha imobiliária. Entra neste ponto a segunda componente da alucinação financeira. As empresas de intermediação tomaram estes fundos como tranches de hipotecas e trataram-nos nos modelos VaR como se fossem simples obrigações com taxas de juro a prazos fixos. Quando o mercado de hipotecas se começou  desmoronar, foi impossível fazer o caminho inverso e identificar que partes da carteira de investimento estavam mais expostas, e em que quantidades.
Fornecer modelos errados ao computador de gestão de risco é como mentir ao médico: não vai ajudar a curar a doença quanda ela se declarar. A culpa não é da matemática: estava a utilizar-se um modelo absurdamente simplista, um pouco como se em engenharia civil se modelasse uma ponte com um tijolo. Os modelos VaR são bons em situações de normalidade nos mercados (os processos de mercado são gaussianos), mas perdem validade em situações extremas, precisamente por serem processos gaussianos. Alguns modelos mais avançados foram introduzidos - fait tails - mas o mal já estava feito... A Matemática teve a sua contribuição para a crise, sim, mas devido à sua má aplicação. A falha foi humana:

- não reconhecimento da independência estatística;
- modelos matemáticos irrealistas;
- suposição errada de normalidade (processo gaussiano). 

Adaptado de "Casamentos e outros desencontros", Jorge Buescu

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