As
crianças afluentes são abundantes em tudo: falam muito, exigem
demasiado, manifestam os seus pontos de vista com excessiva exuberância.
Há muito deixaram de se preocupar com os outros e permanecem centradas
em si mesmas. O seu quotidiano é preenchido por movimentos constantes de
birras, protestos ou tentativas de sedução, conforme as circunstâncias
do momento. O seu discurso é caudaloso, quer em casa quer na escola,
como se não pudessem existir, um só momento, fora do trono que ocupam.
Durante alguns minutos por dia, são capazes de ficar em silêncio,
curvadas sobre si própria: nessa altura, pais e professores suspiram de
alívio, mas é apenas o descanso do guerreiro. De repente tudo volta ao
ponto de partida e a profusão regressa, como se aquelas tréguas só
pudessem ser de curta duração.
Observemos
o seu quotidiano. Imaginemos uma dessas crianças: rapaz, onze anos, 6º
ano de escolaridade, um irmão mais novo. Quando é acordado pela mãe
para ir para a escola, logo começa a protestar, porque é cedo e está
frio. Em regra não toma o pequeno-almoço, toda a família já se atrasou
com o protesto inicial e o menino agora embirra com o leite matinal.
Chega à escola e não fala às auxiliares, mas não hesita em gozar um
colega mais frágil ou em desafiar a professora, sobretudo se não for
logo gratificado com uma atenção privilegiada. A afronta pode ser uma
recusa de resposta, olhos para baixo e braços cruzados com força, ou
aparecer sob forma disfarçada, através de uma série interminável de
perguntas, para as quais há muito conhece as soluções. Nos testes, olha
para o colega do lado para espreitar as respostas, estuda pouco mas
quanto baste para não reprovar.
Chega
o primeiro intervalo. Irritado e cheio de fome, abranda a sua fúria
numa bola de Berlim com creme, ou num donut ressequido do bar da escola.
Não dispensa uma piada a quem o receia e é hábil nas graças às
raparigas. De regresso às aulas, é o momento de armar em líder da turma e
protestar quando a professora tenta impor a disciplina.
Almoça
longe do refeitório, isso é para os chungas. Prefere comer no café mais
próximo, a exigência diária de dinheiro aos pais permite-lhe escolher a
ementa. De tarde, está sonolento nas aulas, olha com ar de desafio em
seu redor, não toma nota dos trabalhos para casa.
Vai
ao judo com a mãe, que aparece a correr deixando o trabalho a meio.
Aplica-se pouco, a sua cabeça já está no centro comercial onde a seguir
vai exigir T-shirt e polo de marca, ténis à moda ou mais um jogo para a
PlayStation. No carro de regresso a casa, protesta uma vez mais: a
T-shirt é de uma cor que não aprecia, faltou comprar mais um par de
calças.
Os
trabalhos de casa são feitos a correr, em alternativa exige à mãe uma
justificação para a professora se não os faz. Ignora a chegada do pai,
pois desde há muito está no Facebook ou a lançar tiros em jogos de
computador. Janta em tabuleiro uma fatia de pizza, de volta aos jogos
não aceita ir para a cama a hora supostamente combinada. No quarto tem
televisão, computador e a amiga PlayStation, quanto mais tarde fechar a
luz, mais vencedor se sentirá.
No
dia seguinte, tudo recomeça: uma série caudalosa de exigência, raiva
descontrolada e retaliação para quem ouse opor-se. Os pais,
desesperados, consultam um psicólogo que o ouve com atenção mas que,
muitas vezes, lhe reforça a omnipotência.
Estas
crianças esquecem que a sociedade já não é afluente. O cibercapital
inundou todos numa torrente de escassez financeira e penúria emocional.
Aos meninos afluentes tudo foi dado ou prometido, porque pais e avós
deixaram que fossem os mais novos a mandar na família, em vez de ser a
família a organizar o quotidiano dessas crianças.
Daniel SAMPAIO, As Crianças afluentes, Público. Pública, 05. 02. 2012, 57
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