segunda-feira, outubro 15, 2012

Eça de Queiroz e a Evolução

Eça, sempre surpeendente...Uma delícia, o conto "Adão e Eva no Paraíso" da sua obra Contos. É uma visão extraordinária para alguém contemporâneo de Darwim. O Eça estava muito à frente...


Eis alguns excertos do conto:

 
"E vivo, da vida superior, descido da inconsciência da árvore, Adão caminhou pelo paraíso. Era medonho. Um pêlo crespo e luzido cobria todo o seu grosso, maciço corpo, rareando apenas em torno dos cotovelos, dos joelhos rudes onde o couro aparecia curtido e da cor de cobre fosco.
(...) Não, não era belo, nosso pai venerável, nessa tarde de Outono, quando jeová o ajudou com carinho a descer da sua árvore!
(...) E, oh maravilha!, diante de Adão, e como despegado dele, estava outro Ser a ele semelhante, mas mais esbelto, suavemente coberto de um pêlo mais sedoso, que o contemplava com largos olhos lustrosos e líquidos - uma coma ruiva, de um ruivo tostado, rolava, em espessas ondas, até às suaves ancas arredondadas numa plenitude harmoniosa e fecunda...De entre os braços peludinhos, abundantes e gordos, surdiam os dois peitos da cor do medronho, com uma penugem crespa orlando o bico, que se enristava, entumecido.
(...) Outros gostos e modos de Eva o irritam também: e por vezes, com uma desumanidade que já é toda humana nosso pai arrebata pelos cabelos a sua fêmea, e a derruba, e a pisa sob a pata calosa.
(...) Mas não sei se vos felicite, oh Pais veneráveis! Outros irmãos vossos ficaram na espessura das árvores - e a sua vida é doce.
(...) Como gastou na cidade, o seu dia, o homem, primo do Orango? Sofrendo - por ter dons superiores ao Orango e por arrastar consigo, irresgatávelmente, esse mal incurável que é a sua alma! Sofrendo - porque nosso pai Adão, no terrível dia 28 de Outubro, depois de espreitar e farejar o paraíso, não ousou declarar reverentemente ao Senhor:
«Obrigado, oh meu doce criador, dá o governo da Terra a quem melhor escolheres,  ao elefante ou ao canguru, que eu por mim, bem mais avisado, volto já para a minha árvore!...»
Mas enfim, desde que o nosso pai venerável não teve a previdência ou a abnegação de declinar a grande supremacia - continuemos a reinar sobre a criação e a ser sublimes...Sobretudo continuemos a usar, insaciavelmente, do dom melhor que Deus nos concedeu entre todos os dons, o mais puro, o único genuinamente grande, o dom de O amar - pois que não nos concedeu também o dom de O compreender. E não esqueçamos que Ele já nos ensinou,..., que a melhor maneira de O amar é que uns aos outros nos amemos, e que amemos toda a Sua obra, mesmo o verme, e a rocha dura, e a raiz venenosa, e até esses vastos seres que não parecem necessitar o nosso amor, esses sóis, esses mundos, essas esparsas nebulosas, que, inicialmente fechadas como nós, na mão de Deus, e feitas da nossa substância, nem decerto nos amam - nem talvez nos conhecem."

Contos, Adão e Eva no paraíso, Eça de Queiroz



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